Por detrás da porta

maria
6 min readMar 14, 2021

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Beatriz assoava as narinas enquanto esperava a página da web carregar. Já há alguns meses que a internet oscilava em horários específicos do dia, principalmente quando os filhos do vizinho da frente, do apartamento 122, acessavam suas aulas à distância. Era o que suspeitava Beatriz, pois sempre que o ícone do wi-fi sumia de seu celular durante os cafés-da-manhã, ouvia uma confusão de vozes que se alternavam entre a comemoração das crianças e os protestos do pai frente às novas tecnologias. Dali a pouco, os papéis se alternavam e os risos infantis rapidamente murchavam, dando lugar a um enorme silêncio no corredor.

Hoje Beatriz acordou mais tarde, a ponto de perder a cerimônia matinal iniciada desde meados de março. Era seu primeiro dia de férias. Como aquele, outros 29 dias ainda haviam antes que retornasse às longas reuniões pedagógicas, aos plantões de dúvidas particulares e a aventura de preparar, filmar, editar e postar vídeo-aulas de inglês e espanhol todas as segundas, quartas e sextas. Já há um ano Beatriz lecionava nas atividades extracurriculares daquele colégio particular — e por isso decodificou tão bem o que se passava no apartamento em frente — , mas honestamente não entendia o porquê de suas coordenadoras manterem seu emprego após a virada virtual da quarentena, já que, aos poucos, suas turmas se transformaram em um grupo de 5 alunos. De qualquer forma, sentiu-se aliviada quando, na primeira reunião online, a direção fez questão de assegurar o trabalho de todos os docentes, ainda que diminuindo o salário de forma significativa.

Quando questionada sobre a situação dos funcionários da limpeza, segurança e os inspetores do corredor, a direção disse estar nutrindo esforços para também garantir os salários de todos eles enquanto fosse possível. Fato foi que ninguém esperava que a curva de contágio nunca mais diminuísse desde então, e após o terceiro mês já não haviam mais funcionários desses serviços dentro do corpo escolar. Beatriz se lembrava de como a indignação dos professores foi se perdendo conforme se afundavam nos workshops de aulas online e correção de tarefas pelos portais educacionais. Ela jogou o lenço de papel no lixo do banheiro, e agora lavava o rosto se atentando ao barulho da água, já que sua mãe ainda dormia no quarto ao lado.

Felizmente, dona Elisa conseguiu se aposentar antes das reformas previdenciárias, o que garantiu seu direito de receber integralmente o salário de recepcionista de um consultório médico no centro da cidade. A entrada na aposentadoria foi feita há 2 anos, bem na época em que Beatriz voltou a São Paulo, recém formada em Letras. Na sua passagem universitária pelo interior do Estado, ela entrou em contato com pessoas dos mais distintos lugares, dos filhos de médicos aos filhos de recepcionistas, como ela. Suas memórias dos discursos proferidos nas assembleias estudantis, com retóricas e gestuais bastante anacrônicos clamando por melhores condições para os trabalhadores e um constante ódio à reitoria da universidade se misturavam com o vazio sufocante das perspectivas possíveis naqueles últimos meses, com as imagens dos funcionários da escola escapando da sua mente, seus traços, trejeitos e vozes se desbotando conforme chegavam as nuvens cinzas do inverno. Todos aqueles rostos aos poucos se transformando na figura sua mãe, de roupa branca e colete esverdeado, articulando o horário dos médicos e dos pacientes por de trás do grande balcão de mogno e mármore.

A página da web carrega enquanto Beatriz termina de passar uma máscara facial que comprou dias antes da pandemia. O alarde inicial e a urgência de se adaptar aos novos meios educacionais a fizeram esperar para que cuidasse de seu corpo apenas quando estivesse de férias. Embora bastante impactante no começo, a verdade é que a quarentena começou a ser útil, depois de algum tempo. As leituras acadêmicas agora eram mais fluidas e concentradas, afinal estava sempre em casa. As horas de transporte público a menos se transformaram em um sono mais profundo e duradouro. Ela revisitou suas séries e escritos inacabados, bem como deletou emails antigos e arrumou o guarda roupa. Saía de casa apenas para ir ao supermercado a cada duas semanas, movimento esse que, embora pavoroso há alguns meses, se tornara normal.

Beatriz preparava o café enquanto pensava nas coisas que poderia fazer nos próximos 29 dias. Uma série nova, um livro novo, talvez estudar o pouco de alemão que aprendera com um namorado de três anos atrás. Quem sabe estabelecer metas mais rígidas para seus exercícios físicos, já que nos últimos dias foi bastante relaxada. Assistir lives, passar hidratante todos os dias, ligar para as pessoas queridas, foi quando se lembrou de uma postagem que uma amiga fez sobre receita de panquecas fitness para o café da manhã.

Entrou no Instagram e se deparou com a notícia da greve dos entregadores de aplicativos. Um colega de infância tirou um print com as promoções, cupons e fretes grátis abundantes que as empresas estavam oferecendo aos seus consumidores, denunciando-os enquanto uma tentativa de acabar com a manifestação. A imagem seguinte era de um grupo de motoboys e entregadores de bicicleta, em que Beatriz reconheceu ser seu colega o terceiro da esquerda pra direita. Haviam vários rostos familiares, na verdade, em especial o da ponta direita. Era um homem alto e calvo, com barba cheia e uma leve barriga saltando da camiseta. Usava óculos de grau, e seu olhar não estava voltado para a câmera; pelo contrário, parecia que o homem olhava sobretudo para dentro de si. Uma espécie de angústia muito profunda se refletia nas lentes, o que chamou ainda mais atenção de Beatriz.

Nessa mesma hora a chaleira começou a apitar, e ela rapidamente desliga o fogo para que o barulho não incomode dona Elisa. O celular estava bloqueado e Beatriz pensativa. Quem seria aquele homem da foto que ela tanto observou. Tinha a sensação de que poderia ser algum conhecido do bairro em que morava quando criança, antes de sua mãe conseguir finalmente juntar dinheiro para comprar o pequeno apartamento em que viviam, que nem era tão distante assim. Ou então o técnico de celular que trabalha numa pequena lojinha ali perto numa das ruas de comércio, uma portinha bem pequena do lado da casa de carnes e da farmácia. Mas a ideia de que poderia ser um funcionário da segurança do colégio particular perseguia Beatriz pelos fios do cabelo.

Seus planos até então vívidos foram empalidecendo na dúvida, assim como os rostos dos personagens do ambiente escolar foram sendo esquecidos. Beatriz tirou a máscara e assistiu lives, estudou alemão e fez seus exercícios, mas não conseguiu fazer a panqueca fitness. Ao invés dela, o que permaneceu em suas entranhas foi esse olhar aflito, voltado pra si. Na semana seguinte, fez as compras do supermercado e se debruçou sobre as notícias dos jornais, manteve seus exercícios e o hidratante após o banho, ainda que isso já não importasse tanto quanto entender aquele homem. E quando suas férias praticamente haviam acabado e todas as possibilidades de rotina e compromissos inicialmente pensados foram cumpridos, sua mente ainda se encontrava naquele olhar perdido.

Talvez tenha percebido que mais do que tormenta, o que aquele homem a transmitiu foi a mais profunda verdade sobre si mesma, um rasgo que a permitiu enxergar para além da sua casa, para além do vizinho esbravejando contra a internet e para além do novo normal instaurado na sua ida ao mercado. Um rasgo que a atinge e escapa, a define e a desfigura. Tudo parece impossível de mudar, inacessível de alcançar, e, ao mesmo tempo, tudo nos afeta diretamente, desconcertantemente. Nada nos é permitido tocar, mas tudo nos toca. O Brasil é agora, e é, sempre, dois; um lado, dos filhos de médicos que conheceu na universidade; o outro, os filhos de recepcionistas, como ela. Ambos, intocáveis.

Foi o olhar para si daquele homem que fez Beatriz voltar a se olhar. E por detrás de suas próprias portas, havia muito mais que o silêncio do corredor. Ela não imaginava que cuidar de seu corpo nas férias diria respeito a entender quem era e onde estava. E quando finalmente decidiu ver a receita da panqueca fitness, no dia em que voltava ao trabalho, a página da web não carregava e o ícone do wi-fi sumiu do seu celular.

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