Pedagogia da felicidade

maria
3 min readMar 13, 2021

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Escrito em agosto/17

Hesitei pra tomar coragem e finalmente escrever. Há algum tempo vinha dizendo que preferia o êxito ao hesito, mas isso já me parece um trocadilho distante.

Acontece que a vida tem parecido uma cólica. Uma tensão pulsante, diria até que masoquista, onde os confins do nosso útero são ora submersos em um buraco negro de sofrimento e autopunição, ora em um regime de liberdade de alguns segundos de duração, causando um alívio que, sabemos, é curto e ineficiente. Diacho. Malditos sejam os que comprimem nossos abdômens nos metrôs e baldeações, nos ônibus molhados, levando-nos a abdicar da condição de sujeito para transformar nossa única forma de passar a vida, o corpo, em produto, em trabalho. Eles nos torturam torcendo como um pano de chão as únicas variáveis que nos garantem a certeza de estarmos vivos: nosso tempo e espaço.

A minha geração não era madura o suficiente pra saber como foi sobreviver a uma crise econômica — embora a economia seja, em si, uma violência cuja instabilidade sempre foi um fator mais ou menos recorrente, a depender da sua situação nas classes sociais. Talvez uma ou outra memória muito marcante da infância, algum fato é que esse fantasma que volta a assombrar as etiquetadoras e os leitores de códigos de barras nos soa como uma criação, um projeto, muito mais que um cálculo. Se sequer sabemos como explicar essa intuição, talvez por ingenuidade (em grande parte por desinteresse), por outro lado essa maldição nos tapeia os rostos com olheiras, com a tristeza, com o pragmatismo da profissão que remunera bem, com nosso novo cargo de sustento financeiro e emocional em nossas famílias.

Agora deixo de iludir o leitor com a ideia de que a juventude é coesa o suficiente para ser elucidada em terceira pessoa. Falando sob minha experiência neste atual contexto, percebo que é difícil não observar uma tendência geral à depressão. Essa vontade de se reerguer, mas ser antes fagocitado pela rotina do trampo e da faculdade, pela insatisfação eterna com os mesmos, por neuroses familiares, pela saúde piorada, por vontades adolescentes de adequação que a vida adulta ainda não fez o favor de banalizar, até pela receita que você não só cozinhou errado como ainda deixou apodrecer na geladeira — todo esse movimento interno de negação psicológica dos sintomas (pois se manter na depressão chega a ser confortável) vem levando a sociedade a uma nova forma de adoecer: a negação da vida. Não se consegue seguir em frente estando depressivo, entra-se em uma inércia.

Estava eu neste vórtex nesta semana. Parece até que São Pedro tem dado uma de psicólogo e fazendo com que todos relembrem o quanto gostariam de estar em suas camas até 10h da manhã. Sua mensagem me atacou, e junto com ela, a cólica novamente. Era o dia perfeito para desistir de tudo, menos da depressão. Já ia cancelar as aulas, mas minha aluna não podia remarcar, então fui levada pelo peso da obrigação a sair de minha cama e expor meu abdômen a vulnerabilidade dos poderosos.

Essa aluna é a mais difícil de ensinar. Preguiçosa, ela nunca se concentra, joga o peso da derrota em suas costas e prefere desistir a tentar denovo. Eu sempre a motivava, mas nem chego em sua casa com o corpo totalmente aberto, coisa que tenho aprimorado cada dia na profissão recém iniciada. E como a família influencia na evolução das crianças!
Mas hoje invertemos os papeis. As mesmas formas que me fizeram ir até a casa dela na esperança de conseguir adentrar seu universo solitário e fazê-la se sentir melhor foram as que me calaram, me fizeram esperar ela mesma se erguer, e acreditem, foi a nossa aula mais divertida de todas.

Sair de lá com tamanho prazer foi como a liberdade momentânea das respirações da cólica. Eu, que não podia perder tempo esperando o busão porque já tinha outra aula em meia hora, saí com passo apressado pelas subidas e descidas, sem nem me ligar que era o trabalho que me levava, pois era a felicidade que me movia.

As levezas do ser são insustentáveis, e naquele mesmo voo de alegria, eu sabia que a gravidade logo me puxaria para o centro de meu abdômen para mais uma sessão de contração muscular menstrual. Mas esse suspiro já foi um começo.

O velho clichê: trabalhe com o que você ama, e você

a) nunca mais vai gostar de nada

b) nunca mais vai trabalhar

c) todas as anteriores

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