na navalha

maria
3 min readMay 29, 2021

--

quando ele morreu, você me disse “olha, eu nunca vou conseguir substituí-lo, mas não esquece que sou metade ele, tá?”. e te digo que essa coisa de irmãos é uma loucura, vocês realmente se parecem muito. no começo, eu o via muito em você, era assustador, mal conseguia te olhar sem chorar.

mas hoje, justo no dia do aniversário de vocês, eu te vi e não o enxerguei mais. eu vi você, com traços de minha avó, feições de minha prima, trejeitos de outros tios; ele obviamente era tudo isso também, mas aquela coisa dele, especificamente ele, não estava mais lá.

procurei, juro que procurei, durante todo o tempo que conversamos. e vou te dizer, acredito que achei algo, sim, devo ter achado. a questão é que isso já não é nem um pouco óbvio para mim, como antes era. a angústia me bate; essa nebulosidade me faz pensar que talvez não tenham sido traços seus que sumiram, mas memórias minhas que se miopiam. visão é coisa perene demais: basta 1 ano de ausência para que 22 anos se tornem foscos.

mas lembro que, em dado momento, te ouvi junto com ele. por meio desses vocábulos que direcionam o fim de um assunto e o início de outro, sua voz — mais rouca e baixa — entoou um sonoro “tá certo”. Se os óculos me traem, a audição não falha; ali, encontramo-nos os três. claro, comunicativos que são vocês, não haveriam de estar juntos em outro lugar. e esse pequeno segundo me alivia. em partes.

de tantas horas de conversa, pequenos segundos estão longe de uma metade, embora pequenos segundos estejam longe de pequenos. O tempo não parou, porque desde que ele se foi o tempo não para mais; mas confesso que, naqueles pequenos segundos, o relógio atrapalhou-se nos ponteiros, o mundo encarou seu movimento, e o vento até se estagnou para vê-lo na sua voz, mais rouca e baixa.

se em você eu o encontrei no som, imagino o que dele você encontrou em mim. e que coisa, ao nos despedirmos, você curiosamente beijou minha cabeça. digo curiosamente porque já há algum tempo tenho pensado que meu cabelo é a única coisa que sobrou dele. meu cabelo estava no hospital, na uti, no velório, no enterro. ao contrário de mim, meu cabelo não perdeu a visão; as células mortas que carrego na cabeça, elas sim, fato consumado, cordão umbilical, prova cabal da permanência dele. em cada ponta de cada fio, ele vivo está.

acontece que a ponta de um cabelo meu atualmente tem a mesma unidade de grandeza de um segundo dentre as horas de conversa: uma gota no oceano. pode até ser a gota, mas é, tristemente, apenas ela. como ele era o cara, mas o único cara. o pai, o único pai. o gêmeo, o único gêmeo. em nossas últimas palavras, ele me dizia que se sentia como um passarinho apagando o incêndio com a água que cabia no bico. ele era o incêndio, o passarinho e a água, e hoje o que nos resta é essa gota, a que cabe no bico. essa mesma gota.

talvez seja isso mesmo; no hospital você me falou que ainda teríamos metade dele, mas talvez ele já se tenha tanto multiplicado, que só conseguimos perceber algo menor que isso. agora o meu cabelo e sua voz rouca são o que restou de nós três. se eu sou uma metade e você é outra, a nossa soma não é ele por inteiro, mas sua completa ausência. e sabe o que mais? agora eu não te vejo metade ele. eu te vejo cem por cento eu.

te digo, tia; adquiri o medo de cortar o cabelo. no meu imaginário, estar com os fios íntegros e originais quando a pandemia acabar é um jeito dele ter sobrevivido, de alguma forma; eu viveria essa primeira experiência de luto no âmbito coletivo com ele me dando a mão, me ajudando a encarar esse novo século no qual ele nunca viverá. mas talvez hoje, no aniversário de vocês, eu finalmente tenha a coragem de cortar o cabelo. quem sabe assim, nós duas compartilharemos mais do que a ausência, mas a vontade de, com ele, revivermo-nos. não quero cem, cinquenta, um por cento. assim como rasgado é meu peito, faço o corte na navalha; nos quero do zero, recomeçando tudo denovo.

--

--