Largo do poente, s/n

maria
3 min readMar 14, 2021

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Ontem fez 1 mês que meu pai passou pro outro plano. Por coincidência, foi o dia em que eu tive que sair da quarentena pra resolver alguns problemas (relacionados a isso, inclusive). Foi bom, peguei o carro e lá estava ele comigo, a gente pôde passear, ver o sol se pôr, conversar. Acabei fazendo alguns caminhos que eram cotidianos, as casas que a gente morou, a igreja onde fiz catequese, a padaria que a gente ia aos sábados — ele alegrava os funcionários com várias brincadeiras e trocadilhos e eu ficava toda tímida….e olha que coisa, mesmo as ruas que só tinham casas ou cachorros latindo por detrás dos portões de repente formavam uma geografia cheia de significados. As folhas das árvores no chão, o asfalto cheio de remendos, as calçadas com alguns buracos e desníveis, os cheiros e paisagens que cada lugar tem e que só ali vivem, pertencem, também, a memória que tenho de meu pai e a memória que ele tem de mim.

Se eu fosse calcular toda a trajetória da vida dele, diria que 1/3 foi sobre a minha família, sobre cuidar de nós. Os outros dois terços foram, primeiro, sobre a vida pessoal, a fé, a infância, e segundo, sobre o país, a luta contra a ditadura, a atuação política. Eu ainda não cheguei no meu primeiro terço de vida, mas pelo menos 22 anos o tiveram como figura central na definição de amor e de acolhimento. Era ele meu lugar seguro, a minha própria casa, o abraço onde, não importasse o tempo que fosse, eu me encaixaria perfeitamente.

Não acho que a importância que ele ocupa aqui dentro vá se abalar em algum momento, embora as coisas já sejam diferentes há um mês, pelo menos. É difícil falar em segurança num contexto em que tudo seja tão incerto, que o mundo tenha acordado pro fato de que somos extremamente vulneráveis. Eu acredito na profundidade que a nossa relação pai e filha foi construída ao longo de 22 anos — e talvez ao longo de algumas encarnações — , mas me sinto desamparada, jogada no mundo, como se estivesse em perna de pau e de repente me arrancassem uma das madeiras. Desequilibro-me, cambaleio no céu, a altura é suficiente pra me quebrar mais algum osso.

Em muitas das vezes que me volto a essa perda fico olhando pra baixo, tentando recuperar a outra perna ou antecipando a dor da queda. E como o luto é uma confusão de imagens e vazios, ao mesmo tempo também lembro que sempre tive o sonho de voar, de virar borboleta. Era meu pai quem me empurrava no balanço, o mais perto que eu já senti de bater as asas. Ele sempre me incentivou a ser independente, forte, consciente, madura. Foi meu pai quem me ensinou a ser mulher. Para nós, minha única barreira era a gravidade, que me puxava de volta para debaixo da estrutura do balanço. Mas lá estava ele a postos, me ajudando a criar meus próprios movimentos.

Talvez a gravidade não importe. Talvez não seja uma barreira. Eu posso cair, mas se for como todas as outras vezes, ele vai estar lá para me fazer levantar voo novamente. De uma forma diferente, é claro. Hoje eu já caminho sozinha, empurro meu próprio corpo no mundo em busca dessa sensação de flutuação, de felicidade. Nos últimos tempos, ele ficava na retaguarda, já mais velho, mas sempre me dando forças a partir da palavra e sabedoria. E a minha realização se dava justamente no momento em que a gravidade me puxava e eu podia me aproximar, contar, ouvir e debater tudo que se passava um com o outro.

Como se realizar sem ele aqui, física e verbalmente? Tenho suspeitado que pela lembrança viva e latente de todos os nossos encontros, antigos e atuais. Afinal, a memória, de tão intensa, nos movimenta.

Acho que ele gostou do passeio de hoje.

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